Fique de olho: constipação intestinal pode ser sintoma de doença celíaca?

A clássica descrição da Doença Celíaca cursando com diarreia crônica e agravo do estado nutricional, ou seja, a manifestação florida e consagrada desta enfermidade, nos dias atuais, já não é vista com tanta frequência como ocorria em um passado não distante. As possíveis razões para esta mudança de comportamento de apresentação não são de todo conhecidas, mas sem dúvida alguma, o advento dos testes sorológicos de rastreamento, inicialmente com a introdução dos anticorpos anti-gliadina, e posteriormente com os anticorpos anti-endomíseo e anti-transglutaminase, mais sensíveis e específicos do que os primeiros propiciaram desvendar o que se convencionou denominar o “iceberg” da Doença Celíaca.

A parte visível seria constituída pelas manifestações floridas e a submersa representaria as mais diversas formas chamadas de “atípicas” ou “silentes”, ou ainda “monossintomáticas” ou “assintomáticas”. Nestas circunstâncias passaram a ser descritas inúmeras manifestações não convencionais, digestivas e extra-digestivas. Dentre as manifestações atípicas digestivas a constipação surge como uma das possibilidades sintomáticas, muito embora seja pouco descrita na literatura médica.

Neste sentido, no número de junho de 2012 da Revista Paulista de Pediatria tivemos a oportunidade de publicar o artigo“Doença Celíaca e Constipação: descrição de uma manifestação clínica atípica pouco frequente – Cristiane Boé, Adriana C. Lozinsky, Francy R. Patrício, Jacy A. Andrade, Ulysses Fagundes-Neto. – Revista Paulista de Pediatria 2012;30:283-7”.

Considerando a alta prevalência de constipação no nosso meio e reconhecendo que a imensa maioria dos pacientes que apresenta esta queixa, o problema representa um transtorno funcional, há uma tendência natural em não se aprofundar na investigação clínica-laboratorial. Entretanto, quando algum sinal de alerta pode ser caracterizado é necessário levantar a suspeita de se estar lidando com alguma patologia de caráter bem definido, e, portanto, avançar na investigação diagnóstica. Por esta razão, a seguir transcrevo na íntegra o supracitado relato de 2 casos de Doença Celíaca cursando com constipação.

A Doença Celíaca é uma intolerância permanente ao glúten, caracterizada por atrofia total ou subtotal da mucosa do intestino delgado proximal, hiperplasia das criptas e infiltrado linfocítico intra-epitelial, e consequente má absorção dos nutrientes da dieta, em indivíduos geneticamente susceptíveis. A DC é considerada uma enteropatia crônica imunomediada e apresenta íntima associação com o antígeno de histocompatibilidade (HLA) da classe II, DQ2 e DQ8.

[perfectpullquote align=”left” bordertop=”false” cite=”” link=”” color=”” class=”” size=””]As citações de constipação como um dos sintomas de forma atípica da DC, particularmente em artigos de revisão, são recorrentes, porém, são raras as descrições comprovadas[/perfectpullquote]A forma clássica da DC, descrita por Samuel Gee, em 1888, caracteriza-se por diarréia crônica, distensão abdominal, perda de peso e/ou retardo no ritmo do crescimento, vômitos, dor abdominal, irritabilidade e atrofia da musculatura glútea. Embora esta ainda seja a forma mais frequente de manifestação clínica da DC, cada vez mais estão sendo descritas as formas atípica e assintomática.

A descrição de constipação como manifestação atípica da DC é pouco freqüente na literatura, principalmente em Pediatria. Egan-Mitchell, em 1972, realizaram uma análise de 112 crianças com diagnóstico de DC e encontraram que 10,7% delas apresentavam constipação.

O objetivo deste artigo é relatar 2 casos de pacientes portadores de DC cuja manifestação clínica atípica foi constipação crônica.

A DC é uma intolerância permanente ao glúten, e é considerada uma enteropatia crônica imunomediada.

A prevalência da DC na Europa e Estados Unidos da América tem sido descrita variando de 1 caso para cada 100-200 indivíduos. Em São Paulo, investigando-se doadores de sangue, demonstrou-se que a DC não deve ser considerada uma enfermidade rara, sendo sua prevalência de, pelo menos, 1:214 indivíduos.

Além da forma clássica as outras formas reconhecidas são:

  • Assintomática ou silenciosa: enteropatia típica sensível ao glúten, porém com ausência de manifestações clínicas. Grande parte deste grupo é composto por parentes de primeiro grau de pacientes com DC e pacientes com diabetes insulino-dependente;
  • Não clássica ou atípica é caracterizada por quadro mono ou paucissintomático. Tem início mais tardio na infância. Os pacientes podem apresentar manifestações isoladas como baixa estatura, anemia por deficiência de ferro refratária ao tratamento, artrite ou artralgia, convulões, hipoplasia do esmalte dentário, dermatite herpetiforme, hipertransaminasemia, puberdade precoce, dor abdominal recorrente e constipação.

As citações de constipação como um dos sintomas de forma atípica da DC, particularmente em artigos de revisão, são recorrentes, porém, são raras as descrições comprovadas de constipação como sintoma da enfermidade, disponíveis na literatura.

No extenso levantamento bibliográfico realizado encontramos apenas 2 artigos que descrevem constipação como sintoma de DC na faixa pediátrica. Egan-Mitchell et al, em 1972, estudaram 112 crianças com diagnóstico de DC e encontraram que 10,7% (12 crianças) apresentavam constipação.

A DC é cada vez mais reconhecida na população adulta sem que conste a queixa de diarréia, com uma porcentagem maior de pacientes que se apresentam como indivíduos assintomáticos, frequentemente detectados em exames de triagem. As formas atípicas estão na verdade se tornando típicas.

A Sociedade Norte Americana de Gastroenterologia Pediátrica Hepatologia e Nutrição recomenda que a DC seja considerada no diagnóstico diferencial das crianças com sintomas persistentes do trato gastrointestinal, incluindo dor abdominal recorrente, constipação e vômitos.

Em 2007, um estudo multicêntrico realizado nos EUA, demonstrou que uma intensificação na realização de testes de triagem para DC poderia aumentar a detecção destes pacientes no país. Neste estudo realizado entre 2002 e 2004, foram diagnosticados 22 casos de DC em 976 pessoas investigadas e destas, 4 apresentavam sintomas de constipação. Comparando-se com as taxas de diagnóstico anteriores a esta intensificação nos testes de triagem, observou-se um aumento bastante significativo de novos casos, saltando de 0,27 casos para 11,6 casos para cada 1000 pacientes investigados.

Quando a constipação se manifesta acompanhada de outros sinais de alarme, como, por exemplo, algum grau de agravo nutricional, este evento deve servir de indicador para que se aprofunde a investigação diagnóstica. Em ambos os nossos casos durante o seguimento ambulatorial a constipação persistiu associada a um agravo nutricional, e, por esta razão, foi decidido realizar uma avaliação da função digestivo-absortiva, a qual resultou positiva para DC.

Em conclusão, é necessário enfatizar que a DC pode se apresentar de múltiplas formas, a saber: sintomática, assintomática e atípica. Apesar de ser escassa a descrição da DC cursar com constipação crônica, esta não parece ser uma manifestação atípica de prevalência desprezível. Torna-se, portanto, de extrema importância que os profissionais da saúde estejam atentos para esta manifestação considerada atípica, como possível forma de apresentação da DC e quando tal suspeita for levantada, deve-se realizar a investigação pertinente.

(Fonte e foto: Igastroped – com todas as devidas referências bibliográficas)